O século XVIII europeu legou à Europa e, por conseguinte – dada a influência da colonização – , a boa parte do mundo, o movimento histórico-filosófico conhecido por Iluminismo. Se podemos fazer um esforço de síntese, forçadamente e com uma generalização sempre empobrecedora, apenas para ajudar na construção do raciocínio, o Iluminismo notabilizou-se pela elevação do racionalismo a um patamar até então não conseguido. Era, portanto, a tentativa da construção de uma espécie de império da razão ante o obscurantismo que insistia em nortear a Europa.
Reativo e propositivo, a um só tempo, o Iluminismo olhava para o passado/presente, buscava desnudar suas entranhas, compreender suas estruturas, todavia criticando-as e apontando para algo novo, para a formação de renovadas bases capazes de suportar uma sociedade que mudava, onde os valores burgueses se expressavam com maior vigor, onde o caminhar necessário à época não permitia a utilização dos mesmos caminhos de sempre. Era preciso, neste sentido, garantir um fundamento: o estabelecimento de direitos aos indivíduos e, por extensão, à sociedade. Direitos burgueses, é verdade, em consonância ao desenvolvimento acelerado daquele grupo social e às pressões por ele exercida sobre as velhas estruturas.
Assim, a liberdade como direito, a igualdade jurídica como direito, a defesa da propriedade como direito – nada é mais burguês –, a consolidação de um contrato social que garantisse um amplo conjunto de direitos sociais e políticos aos cidadãos, bem como os limites de atuação do Estado e dos seus representantes, como os governantes, era o que se pretendia. Houve choques, sentidos de imediato, notadamente no desenvolvimento da revolução industrial. Os trabalhadores começaram a perceber que a lógica burguesa de estabelecimento de direitos negava o próprio caráter revolucionário da burguesia, que outrora buscara romper com estruturas flagrantemente incapazes de resolver os problemas do conjunto da sociedade, até porque eram estas estruturas mesmas as responsáveis diretas por aqueles problemas. A industrialização trouxe ao mundo do trabalho a compreensão de que a lógica burguesa de igualdade era desigual e geradora de um outro tipo de desigualdade, de que a propriedade como direito existia na forma de direito natural, idealizada, mas que a sua garantia de materialização plena se concentrava mesmo era nas mãos da burguesia, utilizando-se da força de trabalho, do suor dos corpos dos trabalhadores, usados e abusados à exaustão e à morte. A igualdade burguesa era desigual, os direitos burgueses criavam, gradativamente, novas formas de privilégios que mimetizavam os privilégios nobiliárquicos e clericais contra os quais a burguesia se insurgira havia pouco tempo.
O século XIX trouxe o necessário contraponto. Uma nova filosofia que discutisse os privilégios burgueses daquele tempo, que buscasse compreender e fazer compreender a força da coletividade acima do indivíduo, do trabalhador – mola-mestra de qualquer desenvolvimento
econômico, de qualquer construção substancial de riqueza. A igualdade plena de direitos, o reposicionamento do papel do Estado como elemento central e nivelador, a divisão social igualitária da riqueza produzida socialmente, para que que a ninguém faltasse o quanto necessário e a ninguém sobrasse mais do que o necessário a ponto de haver opressão dos homens pelos homens.
Igualmente idealizadas, as teorias sociais formuladas a partir do século XIX e com impacto no século XX – socialismo, comunismo, anarquismo – se revelaram importantes teorias mesmo – as suas tentativas de materialização prática foram solapadas pelas pressões externas e pelos jogos de interesse em disputa em escala global, mas também pelas suas contradições, incongruências e erros internos.
No entanto, se a materialização plena destas teorias jamais foi possível – talvez mesmo porque existam exclusivamente no campo teórico –, é preciso compreender que alcançamos algum estado de civilidade possível, de bem-estar social, de regramento das relações jurídicas e políticas, de estabelecimento de direitos (como os trabalhistas e os sociais), não pelo impulso burguês do século XVIII ou por uma espécie de beneplácito desta classe social, mas pela organização, pressão e luta cotidiana dos trabalhadores e da sociedade como um todo a partir do século XIX e ao longo do XX, no sentido de pressionar as estruturas do Estado, agora dominadas fortemente pela burguesia, para garantir o quanto fosse necessário à construção de uma sociedade senão igualitária – utopia que ainda precisa permanecer viva, porque mobilizadora de forças e afetos na possiblidade de um mundo melhor –, ao menos minimamente justa e equilibrada. Esta equação ainda não fechou, é bom dizer, o que só explica a necessidade da busca e da luta permanentes em nome dela.
Nesta dialética histórica inacabada e inacabável, nesses fluxos e refluxos, cá estamos no século XXI. E o século XXI trouxe – estranho que seja – a necessidade de debater o que nos parecia óbvio e assentado após as experiências totalitárias e ditatoriais do século XX: democracia. O real sentido da democracia em nosso tempo não pode se confundir com uma espécie de ditadura da maioria – voto e vitórias eleitorais não conferem este direito, porque não existe este direito. Ele se assenta na pluralidade, no diálogo, no consenso e no dissenso, de forma não necessariamente harmônica, mas necessariamente equilibrada e comprometida com a disputa e o exercício do poder de forma mediada e limitada, com a preservação do debate público como espaço vital. Assenta-se, pois, numa espécie de civilidade necessária à própria existência e continuidade da democracia, um regime que abriga os desiguais e que obriga os diferentes a submeterem-se às mesmas regras, numa espécie de dança em que o consentimento de uns precisa encontrar par – e só faz sentido – no comedimento de outros, parte do que chamamos de contrato social.
Qualquer forma de afastar-se disso é nociva à coletividade, compreendida aí não como um ajuntamento de estranhos com o objetivo de formar um corpo único e comum, mas como os vários corpos, individuais e coletivos, que aqui e ali se aproximam ou se afastam ao sabor das circunstâncias, dos desejos, dos interesses ou das consciências, nas suas identidades múltiplas e únicas a um só tempo.
Qualquer forma de usar elementos da democracia – que nada tem de perfeita, mas algo tem de virtuosa – como instrumentos de negação e destruição da própria democracia – um paradoxo em si –, revela-se um perigo aos corpos, aos indivíduos e às coletividades que a própria democracia deveria abrigar. E é sempre um perigo de mão dupla. É, portanto, talvez, uma das poucas coisas que a democracia deva rechaçar e não permitir em seu seio, posto que deletéria.
Assistimos, atentos, nas últimas semanas, ao teatro eleitoral estadunidense. Seu sistema esdrúxulo de votação, a inexistência de um princípio fundamental em que cada pessoa valha um voto, seu relativo anacronismo, posto que pensado como forma de equilibrar as recém- independentes colônias, a partir de então estados federados com significativa autonomia, em fins do século XVIII, e uma cultura política sub-reptícia que busca muito mais afastar as pessoas do direito de voto, em alguns casos com regras que buscam verdadeiramente impedir o exercício deste direito, tudo isto carece de um debate. Mas este debate é interno, deve ser tomado pelos estadunidenses, respeitado o direito de autodeterminação dos povos, sua autonomia – coisa que, pensada para as outras nações, não é o mais comum entre eles, ironicamente.
No entanto, há um caráter naquelas eleições que ultrapassa suas fronteiras, como, ademais, grande parte das coisas que dizem respeito àquela que se colocou como mais poderosa nação do mundo, seja pela força do dinheiro ou das armas. Muito já se disse a respeito e muito ainda haverá de ser dito, pensado e feito a partir do que ocorreu por lá nos últimos quatro anos.
Quatro anos atrás, como parte de uma estratégia da extrema-direita, Donald Trump foi alçado à presidência, numa eleição flagrantemente conspurcada. Hoje, sabemos fartamente, houve manipulação de dados, propagação de mentiras –algumas das quais inacreditáveis para o tempo em que vivemos –, proposital destruição de reputações, descrédito na democracia como valor, tudo isto contando com o apoio das grandes empresas de tecnologia e das redes sociais a elas associadas.
O Brasil colocou-se como parte deste teatro sombrio. Aqui, o golpe de 2016 e a eleição do atual presidente, em 2018, estão, de forma evidente e irrefutável, neste mesmo universo. O pleito presidencial de 2018, no Brasil, foi fraudado! Não, os votos não foram trocados nas urnas. A fraude foi outra, mais sofisticada, pois esteve no falseamento do processo como um todo, na proposital retirada de peças do tabuleiro da disputa, na propagação de mentiras, nos crimes cibernéticos e eleitorais cometidos quanto aos disparos de mensagens em massa e à robotização destes disparos através das redes sociais, no conluio jurídico-midiático-parlamentar-militar- empresarial que a cada novo dia e nova descoberta se torna mais evidente do que já o era.
No dia 7 de novembro de 2020, sem margem tão grande quanto se esperava ou desejava, Joe Biden foi eleito presidente dos EUA. Não se espere dele que seja o anunciador de uma era de pacifismo, de igualdade entre os povos, de fim da exploração sobre economias mais frágeis, da anunciação da boa nova que irá nos redimir. Não será. Os interesses estadunidenses estão e estarão à frente, norteando as decisões. Há composições a serem feitas e a margem para mudanças substanciais é pequena nestas questões.
No entanto, há um elemento que permite um alento, uma comemoração – tímida e muito alerta, desconfiada – quanto ao ocorrido. A queda de Trump – somada às últimas eleições ocorridas em 2019 e 2020 na América do Sul – deve alimentar os espíritos dos que pensam e fazem o mundo sob princípios que se opõem àqueles da extrema-direita populista que Trump, Bolsonaro, Erdogan, Duterte, Orbán e outros são parte. Ela explicita a possibilidade concreta de derrotar aqueles que se comprometem com a violência, o preconceito, o negacionismo, o autoritarismo,
o obscurantismo, a ausência de decoro e de civilidade.
O Brasil passará por eleições municipais em uma semana. É, já, o momento de escolhermos candidatos compromissados com a democracia no seu sentido mais correto, com o respeito à diversidade (étnica, cultural, de gênero), com a luta antirracista, com a luta contra as violências praticadas pelos agentes do Estado (a violência policial é uma chaga entre nós), com a questão ambiental, mas, sobretudo, com o desfazimento do obscurantismo que acreditávamos ter sucumbido ao Iluminismo e a favor das causas sociais mais nobres, das trabalhadoras e dos trabalhadores, bem como das populações mais fragilizadas pela desigualdade e pelo desequilíbrio no acesso aos bens públicos e ao aparato do Estado.
Em 2022, nas nossas eleições presidenciais e para o legislativo federal, a luta deve ser no sentido de reconduzir o Brasil a um processo civilizatório, negado e solapado por um governo cujos princípios são os da destruição e desfazimento de tudo o quanto pudemos construir, de
forma longa e extremamente difícil.
É preciso saber que este presidente não está sozinho. Internamente, conta com parte de uma elite assentada exclusivamente no valor do dinheiro, mas em nenhum princípio ético ou moral, ou de responsabilidade social ampla, bem como por camadas médias e mesmo empobrecidas que embarcaram na ideia de que o Estado é um inimigo e de que a política é nociva. Há que se fazer o bom debate, a boa exposição da realidade, a apresentação de plataformas que garantam a possibilidade de reaproximação com parte deste eleitorado e, ao mesmo tempo, exponha de forma incontestável o papel que parte da elite vem cumprindo, historicamente, entre nós.
Externamente, compreender que com a queda de Trump, muso inspirador declarado deBolsonaro e da sua “familícia”, o Brasil se isola e se enfraquece, mais do que já se nota. É necessário buscar pontes e aproximações com um campo progressista que ultrapassa nossas
fronteiras.
O resgate da democracia e o seu aperfeiçoamento é tarefa daqueles que têm compromisso com seus valores. O direcionamento no sentido do desenvolvimento de uma sociedade capaz de produzir crescimento econômico aliado à preservação do meio ambiente, ao estabelecimento de regras e direitos trabalhistas sólidos, no sentido de garantir uma cidadania renovada, que respeite a diversidade que nos é própria e proteja os mais vulneráveis é uma necessidade de sempre, que ganha contornos de urgência no agora. A omissão não é uma escolha. Derrotar Bolsonaro, seus seguidores e suas ideias é um imperativo para quem almeja um mundo verdadeiramente melhor, ainda que haja entre contradições. Porque há contradições superáveis, mas a destruição ora em curso pode ser irrecuperável se não agirmos com firmeza.
2022 já havia começado há bom tempo, ainda que houvesse quem relutasse em acreditar. Bolsonaro está em campanha, apesar da sua atuação genocida na crise da covid-19 e seu caráter destrutivo. Para quem tinha alguma dúvida, está mais que claro que, para o Brasil, 2022 começou, definitivamente, em 7 de novembro de 2020.
*Allysson Mustafa é professor de História, Coordenador Geral
do SINPRO-BA e membro da diretoria executiva da Contee.
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