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Domingo, 13 de Outubro de 2024

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Alice, o gato e o caminho

Muito se tem falado, desde que iniciou-se a pandemia

Alice, o gato e o caminho
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O multifacetado Lewis Carroll, naquela que foi, sem dúvida, a sua mais famosa obra – As aventuras de Alice no país das maravilhas (Alice in Wonderland, em seu original) –, publicada nos idos de 1865, apresentou um diálogo entre Alice e o Gato de Cheshire, que pode ser resumido pensando-se na resposta do Gato à pergunta de Alice, que lhe indaga sobre que caminho deveria pegar para sair de onde estava, ao que ele responde que dependeria de onde ela desejava chegar, ao que Alice lhe diz que isto pouco importava, e o Gato completa dizendo a Alice que então também não importava o caminho a seguir, já que não se sabia onde se desejava chegar.

Muito se tem falado, desde que iniciou-se a pandemia de Covid-19, sobre o que será de nós, como humanidade, num sentido amplo, a partir daqui. Ou seja, o que tudo o que temos visto, vivido, sentido, sabido e passado será capaz de produzir em nós no sentido da construção coletiva futura. Há muitos – gente que reputo boa-fé, inclusive – que dizem que, obrigatoriamente, seremos impelidos a encontrar um caminho de mais equilíbrio entre os humanos entre si e com a natureza (aquela coisa de que fomos nos afastando, como se dela não fizéssemos parte, como 
se dela não fôssemos um dos elementos).

Não sou otimista. A rigor, gravito entre o pessimismo quase convicto e o pragmatismo, mas com uma centelha de esperança na possibilidade de sermos melhores que, com esforço, vou buscando manter acesa e alimentar, talvez como forma de manter-me vivo e não ceder à possibilidade de desistir de todas as lutas. No mais das vezes, sou dos que pensam que se tudo pode dar errado, então há de dar errado mesmo. 

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No entanto, professor que sou, meu fazer confunde-se com esse meu olhar sobre o mundo, naquilo que, neste olhar, ainda acredita e labuta para que vivamos, de fato, um mundo verdadeiramente melhor. Educação rima, ou precisa rimar, necessariamente com transformação: primeiro do próprio sujeito, e, junto a isto, concomitantemente, da coletividade de que os sujeitos são parte. Pessimista-pragmático, me abro à utopia necessária para manter-me caminhando, do contrário, prostro-me e petrifico.

Trazendo para o universo em que trabalho e milito, vejo, então, gestores públicos e privados buscando acelerar os processos de reabertura das atividades econômicas, anunciando possibilidades e protocolos, revelando, quando nada, a intenção de fazer colar no consciente/inconsciente coletivo a ideia de que estamos mais perto que longe disto acontecer, para que as pessoas se acostumem e cedam à ideia, como se ela fosse única e inevitável. 

Atividades comerciais, industriais e de serviços começam a ter seus retornos “plenos” pensados. Dentre elas, a área de educação, com o possível retorno das atividades pedagógicas presenciais para os próximos meses ou semanas.

Há interesses econômicos quanto ao retorno das atividades – falo, aqui, sobre o setor privado, onde atuo e represento professoras e professores, como professor e sindicalista. É cabível aos empresários de educação, que transformaram um direito humano básico em uma mercadoria, a partir das propositais omissões do Estado, que queiram retomar suas atividades de forma a buscar a reconstrução dos lucros, possivelmente abalados pelas ações de combate à pandemia. Jogam o papel que lhes cabe, ainda que, de onde vejo, entenda que há valores maiores e mais amplos que os interesses do capital.

Noutro sentido, há muitas famílias pressionando para que as atividades sejam retomadas – bem como há muitas que se negarão a mandar seus filhos para as escolas enquanto não houver um medicamento reconhecidamente eficiente ou uma vacina para o novo coronavírus –, seja porque não creem na gravidade da situação (tem maluco pra tudo!), ou porque não aguentam mais a pausa na terceirização da educação/formação dos seus filhos a que muitas famílias se acostumaram, ou, é possível, porque retomando as suas próprias atividades, pais e mães não sabem o que fazer com seus filhos, caso eles precisem ir para a luta do dia a dia e seus filhos ainda permaneçam impedidos de estar presencialmente nas escolas.

Talvez não tenhamos entendido nada, como de costume. Continuamos pensando os problemas e as formas de lidar com eles de forma umbilical ou muito setorizada, sem um olhar mais amplo, sem a percepção de que as coisas se afetam mútua, ampla e intensamente.

Por um lado, escolas têm insistido, mesmo na educação remota, neste universo a que foram forçadas a entrar como forma de sobrevivência, num conteudismo atroz, pautadas por bases curriculares antiquadas (a BNCC, até pela sua pouca idade, parece algo novo ou contemporâneo, não é?! Mas só parece, ou, a meu ver, nem consegue parecer: é uma jovem arcaica!) e em exames e vestibulares, essa coisa monstruosa da qual não conseguimos (ou não quisemos) nos libertar. Querem que o máximo de conteúdo seja trabalhado junto aos alunos, focadas muito intensamente no ensino, e pouco na aprendizagem, ou seja, muito preocupadas com o que se ensina, mas não exatamente preocupadas no como os alunos estão aprendendo. 

Pouco ou nenhum debate sobre a própria pandemia e suas razões e implicações, ou sobre as pautas que explodem aos nossos olhos (como sempre explodiram): racismo, desigualdade social galopante, violência de Estado, homo e transfobia, feminicídio, ascensão do fascismo etc.

Alheias ao mundo – e, aqui, registro que é preciso considerar as exceções, pois elas existem e são louváveis – as escolas privadas usam o momento para uma disputa de mercado, buscando cada uma delas construir uma narrativa sobre ter oferecido, na crise, a melhor resposta aos seus já clientes, primeiramente para que eles assim permaneçam e, obviamente, para atrair novos clientes, tomados da concorrência.

O setor, portanto, é apenas reativo, mas não propositivo. E aquilo no que é propositivo o faz de forma umbilical. Nenhum debate sobre o fazer da educação em si neste mundo que já se nos anunciava, mas que, agora, diante da pandemia, arrombou a porta e tomou a casa. Apenas a tentativa de responder ao que está dado, sem grande coordenação, cada qual à sua forma e com um vazio de reflexões.

Há nisso alguns problemas: o primeiro, que toda disputa de mercado, na lógica do capital, é pouco assentada em princípios e valores morais, pois se alicerçam no vale-tudo; o segundo, porque neste vale-tudo desconsideram os demais atores do processo, notadamente os próprios  estudantes e os trabalhadores (e é preciso perceber a eterna tentativa de invisibilizar os trabalhadores), importando apenas os seus desejos, objetivos e estratégias; o terceiro, porque para fazerem passar suas ideias, conseguem impor aos demais atores um roteiro como se ele fosse universal e nos unissem a todos, como se os desejos, objetivos e estratégias fossem os mesmos; o quarto, que me parece ainda mais grave, é conseguir colar no trabalhador (neste caso, professoras e professores) a ideia de que eles – seus empregos – estão em risco, e por isso é preciso que eles levantem as vozes para lutar pela pauta empresarial, como parte da solução, mimetizando os movimentos dos patrões, atuando pelo retorno à “normalidade”, ainda que partido para um sacrifício quase kamikaze, na velha lógica de que prejuízos serão socializados, embora saibamos que os lucros nunca sejam. E há quem embarque nisso... Neste rápido cenário, cabe realmente provocar se estamos ou seremos diferentes a partir dos que estamos vivendo. É se somos ou seremos diferentes, em que sentido o seremos, como um diferente melhor ou um diferente em versão piorada?

Tomados pela ideia de que o mundo organizado pelo deus mercado é inexorável, ficamos todos a gastar ou silenciar nossos talentos, nossas energias, nosso tempo e nossas possibilidades a repetir fórmulas, a seguir os ditames daqueles que sempre estiveram a nos usar como partes de uma engrenagem que nos ejeta quando quer. Não ousamos, não nos rebelamos, não nos organizamos coletivamente para refletir e para apresentar outras possibilidades. De certa forma, nos anestesiamos e nos permitimos ser parte do problema, em vez de sermos parte de uma 
solução diferente. E a solução não é a rendição ou a aceitação, ela exige coragem e exige correr  os riscos das mudanças – exige um querer coletivo e um fazer coletivo, exige estabelecer que novos caminhos queremos caminhar.

Porém, lembrando o diálogo entre Alice e o Gato de Cheshire, de nada adiantará estabelecer um caminho se não soubermos onde querermos chegar.

 

*Allysson Mustafa é professor de História, Coordenador Geral do SINPRO-BA e membro da diretoria executiva da Contee.

FONTE/CRÉDITOS: Allysson Mustafa
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Allysson Mustafa

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