O ano era 2015, quando Caetano e Gil lançaram uma turnê comemorando a amizade, a parceria musical, as carreiras de ambos, que, àquela data, completavam 50 anos cada. No show – que assisti num Farol da Barra lotadíssimo, com cerca de 150 mil presentes, segundo notícias da época, expressão clara da carência de bons eventos artísticos gratuitos, numa bola dentro da Prefeitura de Salvador, em comemoração ao aniversário de 467 anos da cidade –, os dois ícones apresentaram canções do vastíssimo repertório construído em conjunto e separadamente, clássicos da nossa música. Uma canção, porém, chamou minha atenção, por tratar-se, até ali, de uma desconhecida.
Na montagem do repertório, Caetano e Gil compuseram uma canção nova, cuja letra é de Caetano e até hoje confesso não saber se Gil realmente participou da composição, cujo título – que tomo de empréstimo para encabeçar este artigo – faz referência ao fato histórico de, no passado, onde hoje é o bairro do Leblon, haver uma grande propriedade que dava abrigo a escravizados fugitivos, como parte do abolicionismo crescente no século XIX. Na tal propriedade, o cultivo de flores gerava renda. As camélias que notabilizaram o local serviam, inclusive, para enfeitar a residência de Isabel, a princesa a quem coube, cumprindo papel de Estado, assinar a Lei Áurea.
A canção faz referência, também, à Guarda Negra, chamada de Guarda Redentora pelo jornalista abolicionista José do Patrocínio, um ex republicanista que se convertera ao monarquismo, seu criador e entusiasta. Além de buscar salvaguardar a liberdade recém conquistada pelos negros, agora ex-escravizados, a Guarda nutria imensa simpatia pela princesa Isabel, ante o ato simbólico da assinatura da lei que consolidou o que já era objeto de luta desde que a escravidão foi implantada no Brasil.
No dia 2 de julho de 2020, Independência da Bahia e consolidação da Independência do Brasil, circularam, pelo Brasil e pelo mundo, imagens da branquitude carioca a tomar as ruas do Leblon, num quilombo às avessas, para experimentar uma noite de bebedeira e curtição, numa pretensa
exaltação de liberdade dos que já são excessivamente livres, sendo a primeira noite de liberação da abertura de bares e restaurantes na cidade do Rio de Janeiro, epicentro da pandemia do novo coronavírus no Brasil. Negros, ali, basicamente alguns garçons, pessoal de serviços gerais e os garis que vieram depois para limpar a sujeirada, como negras têm sido as mãos dos carregadores de corpos majoritariamente negros e dos abridores de covas que abrigam, sobremaneira, outros corpos negros.
Não foram poucos os registros do desdém em relação à doença e ao sofrimento alheio, no que parecia ser um alinhamento à cartilha do Presidente Jair Bolsonaro, com e bares lotados – e aqui, confesso minha absoluta e relutante dificuldade de utilizar a alcunha Presidente relacionada ao nome Bolsonaro, porque mais viva que nunca a percepção e a compreensão de que sua ascensão ao mais alto cargo da República é a expressão da nossa despolitização, do golpismo engendrado desde 2013 e sacramentado em 2016, da criminalização da política e da deseducação política a que assistimos.
Talvez os que ali estavam sequer conhecessem essa história do Leblon antes de ser o bairro da elite carioca. Não havia, naquele espetáculo dantesco, qualquer poesia ou mesmo qualquer boemia – porque a boemia é poética. Não havia qualquer bravura redentora, muito menos negra – negros pobres, aliás, maiores vítimas do coronavírus no Brasil, como já sabíamos que seriam, dadas a nossa exclusão, nossa desigualdade e nosso racismo estrutural. Havia apenas um hedonismo desenfreado, uma ausência completa de empatia pelas milhares de pessoas no Brasil e naquela mesma cidade que já perderam a vida, bem como por suas famílias enlutadas.
Não havia qualquer ética ou traço de respeito ao momento, que em absolutamente nada pede festas e exaltações públicas.
O Leblon da noite do dia 2 de julho diz muito sobre nós, sobre o ser Brasil e ser brasileiro.
Dois de Julho é o dia da Independência da Bahia, data cívica maior entre nós, mais festejada, e com razão, que o 7 de Setembro. Dois de Julho é dia de reverenciar o Caboclo e a Cabocla, expressões de um Brasil mestiço que lutou pela liberdade nestas bandas. A pandemia e seus impactos no Brasil dizem muito sobre nós. Dizem, entre tantas coisas, que é realmente necessário uma segunda e renovada abolição, renovadas camélias, como os versos finais da canção.
“Somos assim, capoeiras das ruas do Rio
será sem fim o sofrer do povo do Brasil
Nele, em mim, vive o refrão
As camélias da segunda abolição virão”
*Allysson Mustafa é professor de História, Coordenador Geral do SINPRO-BA e membro da diretoria executiva da Contee.
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